17 novembro 2005

Relatórios maioritários

"...estamos unidos no espectáculo e no entanto é nessa altura que cada um se isola mais. Esse isolamento abre-nos a porta a uma realidade que não se vive e simplesmente se vê. De só a vermos, podemos ficar prisioneiros do virutal, do imaginário da ficção. Quando a imagem quer ser espectáculo só atrai se despertar afectos. A imagem-choque surge assim com um lugar privilegiado. " PGR , Souto Moura no Relatório de 2000." Os portugueses não têm o direito a saber, e por isso não podem pretender saber, tudo o que está neste ou em processos congéneres. Têm direito a saber só o que o legislador democraticamente eleito quis que pudesse ser conhecido por eles. E isso deveria ser interiorizado por todos, a começar pelos profissionais da comunicação social." PGR Souto Moura, no Relatório de 2003.
Alguns jornais de ontem, mencionavam uma estatística do Relatório da PGR de 2004, na qual se destacava o número de processos de Inquérito arquivados, durante o ano, por contraposição aos movimentados. O Relatório aponta a percentagem de cerca de 51%, nesse ratio. Se referidos aos processos findos durante o ano, a percentagem ainda sobe mais, pois os movimentados durante o ano foram da ordem dos setecentos e tal mil; os findos, da ordem dos quinhentos mil e os arquivados da ordem dos trezentos e tal mil, ficando duzentos e tal mil para a soma do ano seguinte.
Em 1993, os números correspondentes são: Cerca de 600 mil movimentados; Findos, cerca 360 mil; arquivados, cerca de 226 mil; pendentes, 227 mil.
Em 1994 - 641 mil; 406 mil; 272 mil e 234 mil respectivamente.
Em 1995- 650 mil; 403 mil; 270 mil e 249 mil.
Em 1996- 685 mil; 406 mil; 270 mil e 278 mil.
Em 1998- 663 mil; 434 mil; 331 mil e 228 mil.
Em 1999- 629 mil; 424 mil; 318 mil e 205 mil.
Em 2000- 659 mil; 471 mil; 354 mil e 186 mil.
Em 2001- 657 mil; 474 mil; 353 mil e 181 mil.
Em 2003- 713 mil; 501 mil; 359 mil e 210 mil.
São estes os números. E podem ser consultados por quem perceba do assunto.
Se lermos os Relatórios da PGR de há alguns anos para cá- e pode dizer-se que desde 1993 se fazem de acordo com um modelo então prè-definido por Cunha Rodrigues, poderemos saber como se faz investigação? Como são arquivados e por que razões o são, os processos de Inquérito, "movimentados" no MP nacional?
Não podemos!
Os relatórios apontados começam todos por uma Introdução, ultimamente reproduzindo a comunicação do PGR por altura das sessões solenes de abertura do ano judicial. As considerações, judiciosas muitas vezes, permitem-nos perceber a evolução da instituição ao longo dos anos e perceber o imobilismo aparente que a afecta.
Os "indicadores" que são referidos a seguir, limitam-se à análise perfunctória dos quadros estatísticos publicados. Não se esboça nunca, ao longo destes anos, qualquer tentativa de explicação para os arquivamentos e suas causas. Muito menos se apreenderá, pela análise dos relatórios, como se faz investigação; o tempo médio de investigação em certo tipo de crimes e quais os motivos reais para que o ratio dos arquivamentos corresponda sempre a uma percentagem elevada e superior a metade, nos processos findos.
Quem dá essas explicações? Quem estuda estes fenómenos?! Como é que se poderá legislar convenientemente sem se saberem estas coisas básicas?!
Para se perceber instantâneamente como surgem estes relatórios, é preciso dizer o seguinte:
A PGR definiu regras internas de procedimento, em 1993, para conclusão dos relatórios parciais que todos os magistrados têm o dever de fazer, apontando as datas- limite para tal: Procuradores-Gerais Adjuntos no Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, nos Supremos Tribunais, nos Tribunais da Relação e nas Auditorias Jurídicas, Procuradores da República nos Tribunais de Círculo, nos Tribunais Administrativos de Círculo, nos Tribunais Tributários de 1ª. Instância, no Tribunal Tributário de 2ª. Instância e nos Tribunais Fiscais Aduaneiros e Delegados do Procurador da República - 31 de Janeiro.4.2 Procuradores da República nos Círculos Judiciais - 20 de Fevereiro.4.3 Procuradores-Gerais Adjuntos nas sedes dos Distritos Judiciais, no Tribunal Tributário de 2ª. Instância e com funções de coordenação dos Tribunais Administrativos de Círculo - 31 de Março.
Assim, o Relatório da PGR, mais não é do que o somatório dos relatórios parciais de todos os magistrados do MP. Vê-se que até 31 de Março de cada ano, os relatórios parciais devem ser remetidos à PGR.
Muitos desses relatórios parciais, vindos a primeira instância, contém sugestões, indicações de razões para isto ou aquilo e tendo em atenção a natureza hierárquica do MP, são ( ou devem ser) apreciados nos diversos escalões, até chegarem ao topo. Como é bom de ver, os Relatórios anuais da PGR não contém todos os relatórios parciais de todos os magistrados do MP. Há por isso, uma espécie de escolha e de selecção daquilo que é veiculado para o Relatório geral anual.
Tomemos o Relatório de 2003 como foco de análise, neste ponto concreto, polémico e que respeitava aos "arquivamentos".
Pode, através da leitura do mesmo, alguém perceber quais as razões dos arquivamentos?Vejamos um caso ou dois, referido a comarcas importantes do país: Lisboa: o DIAP, a estrutura básica do MP local e a mais importante para tratar da criminalidade mais comum, referia no seu relatório parcial que havia então quatro secções especializadas para tramitarem inquéritos de dada natureza- estupefacientes; burlas e delitos fiscais; corrupção, fraudes e peculatos e outras "genéricas".
estas genéricas pode muito bem incluir-se o número de processos relativos a crimes contra o património ( furtos, roubos, danos, abusos de confiança, para simplificar). Em 2003 registou-se uma entrada de Inquéritos no DIAP de 76 412.40% deles foram contra "desconhecidos"! Ou seja, um número da ordem das várias dezenas de milhar de pessoas, queixaram-se contra alguém que não conheciam. Presumivelmente por furto, claro. E porquê? Porque a seguir se diz no Relatório que os crimes contra o património são os de maior significado com 46 184 Inquéritos iniciados em 2003. Só depois aparecem os crimes contra as pessoas ( contra a vida; integridade física, honra e liberdade, incluindo a sexual), com 10 709 Inquéritos.
E diz-se ainda que desses números , cerca de 150 processos são de grande complexidade: 50 tinham mais de dez volumes e 4 mais de cem! Houve 3580 detidos durante o ano e 690 prisões preventivas.E depois escreve-se isto: "Por deficiente resposta dos órgãos de polícia criminal, foram praticadas nas secções mais de 7000 actos processuais." !
E é tudo o que poderemos saber de essencial sobre a criminalidade em Lisboa, afecta a processos do DIAP.
E no Porto?
Aí, para além do desfiamento de um rosário de amarguras relacionadas com condições de trabalho, pura e simplesmente indignas, desfiam-se também os números: 27 787 novos Inquéritos. 13 394 deles, contra desconhecidos, os tais e que aqui se diz que entraram na PSP e que representam quase metade dos Inquéritos entrados.
Sobre estes processos e seu andamento o que é que se diz de substancial? Nada. Mas pode ler-se nas entrelinhas e perceber o que se passa, na realidade.
O DIAP do Porto refere 13 394 processos de Inquérito contra desconhecidos– e em Lisboa não é diferente, em termos relativos, pois o número é de quase 30 mil, num universo de 76 mil.
No DIAP do Porto, movimentaram-se cerca de 42 mil processos em 2003; findaram, cerca de 30 mil e foram arquivados cerca de 21 mil, ficando pendentes cerca de 13 mil.
No DIAP de Lisboa, movimentaram-se um pouco mais de 100 mil; findaram 75 mil; arquivaram-se quase 60 mil e ficaram pendentes cerca de 30 mil.
Estes números, em relação aos arquivamentos, o que revelam?!
Que a maior parte desses arquivamentos ocorre em crimes cuja autoria não se conhece nem chega a conhecer! É segredo para alguém esta simples constatação de facto?Só mesmo para quem anda muito distraído...entre os quais avultam jornalistas apressados e com interesses diversos, em que a boa informação pode ser apenas uma coincidência.
Então, onde é que reside o segredo? Nisto: na ausência de estudos e de estatísticas publicados e que revelem onde é que as coisas correm mal , neste campo.
Como todos saberão, ou pelo menos aqueles que já alguma vez foram vítimas de um furto no carro ou em casa ou na rua, praticado por "desconhecidos", a queixa que apresentarem na polícia, vale exactamente o quê?Pouco e muito: vale quase nada em termos de eficácia de investigação. É preciso que alguém responsável diga isto alto e bom som! A polícia, seja a PSP, seja a GNR seja mesmo a PJ, não tem maneira de resolver esta "pequena" criminalidade do furto contra incertos e que assume números avassaladores. Não investiga para além da tomada de declarações dos ofendidos; não tem meios para todas as encomendas e mesmo que quisessem, pouco poderiam fazer, como aliás pouco fazem, por falta dos meios necessários.Resultado? As queixas que são apresentadas e que estou convencido são apenas uma fracção das reais, havendo bastas cifras negras por esse país fora, são frequentemente motivo de incómodos acrescidos para os...ofendidos! Isto é ignorado ? É alguma novidade? Só se for para o actual ministro da Justiça.
Como se viu, estatisticamente, o número de processos de inquérito contra pessoas "desconhecidas" atinge um cifra real que anda, só em Lisboa, na ordem dos 40%!No Porto, a cifra sobe a quase 48%! Com uma agravante: a investigação criminal de mais de 80% das queixas que são apresentadas, por força da lei de investigação criminal que temos, incumbe à PSP!Ou seja, é às polícias que incumbe o dever de investigar este tipo de criminalidade comum, de pequena relevância individual e de imensa importância colectiva. Ou, melhor dito, de pequena relevância colectiva que é notória pela importância que se lhe dá institucionalmente e de uma imensa relevância individual...para cada um dos ofendidos.
No relatório, o DIAP do Porto diz a dado passo que há "grande demora na conclusão dos inquéritos por parte da PSP do Porto". Alguém liga?! Alguém noticia? Alguém vai saber o que se passa?!Para além da criminalidade por crimes contra o património com queixas concretas contra desconhecidos ( ou incertos), e que já vimos que atinge, em Lisboa e Porto, uma percentagem significativa ( igual ou superior a 40%) de toda a criminalidade participada ao MP, há ainda outros factores de arquivamento de processos que não se encontram devidamente especificados nos relatórios: as desistências de queixa apresentadas por ofendidos com legitimidade para tal. Qual a percentagem? Alguém sabe?!
Pode saber...é que actualmente, os tribunais e o Ministério Público, nas comarcas de todo o país e de há um ou dois anos para cá estão equipados com um programa informático gerido pelo...ITIJ, dependente do Ministério da Justiça.
Quer dizer: neste momento, a entidade mais habilitada em Portugal a fornecer dados estatístico sobre o funcionamento da justiça em Portugal é ...o Ministério da Justiça! Através deste Gabinete de Política Legislativa e Planeamento.
Sabem quantas pessoas trabalham neste local, com a incumbência específica além do mais que não deve ser muito mais, de recolher estatistica que todos os meses os funcionários dos tribunais lhes enviam ( e nem se sabe bem porquê, pois o acesso ao programa deveria chegar) ?
Pois, bem! São 90 funcionários que trabalham para um director-adjunto!E o director, no caso a directora? Pois tem ao seu serviço directo, mais ...15! Com dois funcionários só para secretariar!!Leram, ouviram e viram falar do DCIAP de Lisboa que serve o país inteiro e depende da PGR?!Sabem quantos funcionários têm este departamento fulcral do Estado de Direito português para tratar da criminalidade mais sofisticada, grave e acutilante?!!
Olhem! Eles, nem dizem! Por simples vergonha...E sabem quantos magistrados?! Pouco mais de meia dúzia... Carros?! Emprestados, poucos e velhos. Assessores?! Ahahahah! Secretariado?! Eheheheheh!
Algum jornalista sabe disto? Algum jornalista foi perguntar ao minsitro da justiça que anda por aí a invectivar os magistrados e a Justiça em geral, o que acha disto? Algum jornalista vai questionar o ministro sobre os números estatísticos e sobre o que fazem as polícias com os processos cuja investigação têm legalmente a cargo? Algum jornalista questiona o ministro sobre os serviços que estão sob a sua inteira dependência directa, como é o caso dos gabinetes- que são vários?!!
Não me parece. Parecem-me mais uns simples diletantes que se ofuscam com clarões súbitos de parangonas bombásticas, tipo "Souto Moura arquiva metade dos processos!"
É esta a nossa qualidade de vida democrática em que os vigilantes da República adormeceram há muito tempo o sono dos justos !
Acordem, que ainda estão a tempo!
in GLQL

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